Siga
Sexta-feira 13 onde todos nós ficamos bêbados

Sexta-feira 13 onde todos nós ficamos bêbados

22/03/2013

Manhattan: ilha onde todos nos ficamos bêbados, na língua dos índios nativos do delta do Rio Hudson.

O Mercury Rev é uma banda de Buffalo, estado de Nova York. Eles estavam em NYC para lancar seu último CD, "Deserter’s Songs", um trabalho bem diferente de tudo que haviam feito até aquele momento. É 1999, e continuam as eventuais explosões sonoras pinkfloydescas, mas o negócio agora era um pouco mais melancólico, um pouco menos anfetamina. Um amigo meu achou o disco parecido com Enya, o desgraçado. Discordo: para mim, a única coisa que me lembra (e mesmo assim vagamente) é Syd Barrett.

Para mim e para um punhado de pessoas, o Mercury Rev é uma banda especial, que mora se não no coração, pelo menos nas terminações nervosas mais sujeitas a catástrofes sensoriais. São os porta-vozes daquilo que uns engraçadinhos da imprensa chamaram de freak rock, o rock lisérgico dos anos 90, promovido também pelo Butthole Surfers, Flaming Lips, Verve em seus primeiros momentos e sei lá mais quem.

Pela familiaridade com o grupo, estava excitado ao entrar no Bowery Ballroom. Minha companhia era Klaus Madeira, artista residente em NY que está nesse momento expondo em Curitiba. Nós dois tínhamos passado alguns dias em Itapoá, Santa Catarina, com um CD do Mercury Rev, um violão e mais nada, tentando entender o que as formigas insistiam em nos dizer e apreender as cores estranhas que aparecem de vez em quando naquela praia, quando não se tinha nada melhor para fazer além de comer coisas que brotam do chão ou peixes pescados no trapiche. Então, o show era um troço pessoal, tipo casamento do seu melhor amigo, que não dá para perder, nem que seja só pelos salgadinhos.

Bem, entramos cedo e havia duas bandas tocando antes do show, desinteressantes pelo que me lembro. Então sentamos no bar, que fica no andar inferior, bem debaixo do palco, e enchemos a cara sem dar uma moedinha de gorjeta para o atendente, uma heresia por aqui. O lugar estava cheio. O show do MR era o ápice do maior festival de musica alternativa do mundo: o CMJ Festival. Você pagava 370 dólares e via mais de 80 shows usando o seu crachá. Nós, dois vira-latas latino-americanos, preferimos pagar apenas pelos shows que iríamos assistir.

Uma hora depois, as bandas de abertura pararam com o barulho. "Acho que está na hora, irmão", disse, entre goles de Guinness. Mas assim que nos dirigíamos até a área dos shows, o barman começou a gritar, avisando que todos deviam sair lá de dentro antes do show para que o lugar fosse preparado. A coisa iria ser quente. Havia esse pessoal de gravadora colando cartazes do Mercury Rev e outros badulaques nas paredes: eles queriam causar boa impressão no público. Coisa de gringo.

Bem, nós não estávamos a fim de sair dali, por isso achamos uma mesa no mezanino, que ficava a poucos metros do palco, lugar privilegiado para se assistir a um show com tanto potencial sensorial. Nos fingimos de mortos e preparamos um plano de emergência, se por acaso algum segurança passasse por ali para nos expulsar de lá de dentro. Nós estaríamos preparados.

Cinco minutos depois, assistíamos o pessoal da gravadora, nerds do rock do tipo eu-sei-fazer-de-tudo-menos-tocar, enfeitando o local enquanto enchíamos a cara com margaritas gigantescas. Nosso plano era simples e só serviria para que não fossemos enxotados dali na porrada. A chance de testá-lo logo apareceu, na forma de um segurança de 5 metros por 3.

- Caras, vocês tem que sair do bar imediatamente.

- Le escargot!!! Le escargot!!! - bradou Klaus. O plano era se passar por francês que não fala inglês. Isso livraria nossas caras de bofetadas afro-americanas.

- OK senhor, eu entender, OK, esperar um pouco - disse, fazendo o papel do que sabia um pouco a língua local.

- Oui messieur, Le croissant avec la francaise de la marseille - Klaus exagerava.

- Olha meu - Disse o segurança - eu não sei que goddamned de língua seu amigo está falando, mas diga a ele que se vocês não saírem daqui já, vou ter que chuta-los para fora.

- Beleza, meu, só espera eu fazer número um no banheiro, oui?

- Tudo bem, mas seu amigo espera aqui.

Quando saí do banheiro, o segurança me esperava na porta de saída.

- Seu amigo já está lá fora.

De fato, Klaus estava lá fora, mas havia mudado de cor. Vermelho meio azulado. O segurança o havia jogado na rua depois que soltou alguma baboseira pseudo-garlic-gálica em sua cara. Já havia uma fila de reentrada que dava a volta na quadra. Então como bons brasileiros, nos posicionamos na frente da fila por insistência de um vizinho de Klaus que estava no comecinho dela.

Os seguranças abriram a porteira e fomos os primeiros daquela grande serpente humana a apresentar os ingressos, talvez uns dos poucos com ingressos, já que americano adora crachá.

- Vocês não podem entrar com estes. Já estão usados - disse o porteiro. É claro que estavam usados. Mas como iríamos saber que havíamos entrado cedo demais e que os shows que achamos serem de abertura eram, na verdade, outro evento separado? E o pior, nem estávamos interessados naquelas outras bandas. Você pode perguntar para o barman, seu porteiro/segurança/senhor maromba, não saímos do bar nem por um segundo, porque estávamos esperando o Mercury Rev. Os trogloditas nem queriam ouvir.

Depois de insistir muito e falar com o gerente, desistimos. Um dos caras foi até que gente-fina e me deu o numero do dono do Bowery Ballroom para fazer uma reclamação e pelo menos recolher nosso dinheiro. Vamos embora, Klaus! Klaus?

Meu amigo estava roxo, com o olhar fixo no segurança que o havia empurrado para fora do bar.

- Eu vou pegar esse cara!

- Tá louco? Olhe o tamanho do sujeito!

- Vou cuspir na cara dele e sair correndo. Ele nunca vai me pegar, um cara desse tamanho não consegue correr nem meia quadra...

Tentei convence-lo a esquecer tudo isso, mas naquele ponto a raiva já o havia tomado. Para piorar tudo, o Mercury Rev começou a tocar e nós podíamos ouvir a trupe perfeitamente dali, às vezes até ve-la no palco quando alguém do staff abria uma certa porta à nossa frente. Foi como estar com fome assistindo televisão pra cachorro. 

- Bem, cara, se você quer apanhar, vá em frente, mas me deixe fora disso. Tchau!

Fui embora.

Duas quadras depois aparece no meu lado esquerdo um Klaus suado e com as pernas bambas depois de uma corrida de quarteirões. Meu amigo havia cuspido na cara do segurança e fugido como uma lebre. De fato, os seguranças eram grandes demais para conseguir agarra-lo, ele mesmo uma espécie de atleta urbano do sul do mundo.

Eu estava com o walkman ligado e não entendi o que Klaus tentava me dizer. Nem queria saber, só estava preocupado com a represália que poderia vir a qualquer momento - disse diversas vezes que tinha a impressão de estarmos sendo seguidos. E não poderia pedir nossa grana de volta.

Viramos numa esquina. Foi muito rápido. Senti um boeing me agarrando pelo pescoço e jogando meus ossos contra uma grade ao lado. Pensei que era o projeto de BA. Quando tirei meu capuz de inverno vi quem era: o segurança que havia tentado nos ajudar. Ao perceber que havia pego o cara errado, pediu desculpas. Não deu nem tempo dele ouvir a resposta. Nesse exato momento, Klaus começou a arremessar garrafas quebradas do chão no brutamontes enquanto o desafiava verbalmente. O segurança, mais por bom mocismo do que por medo, pediu para que eu segurasse meu amigo louco e foi embora, depois de levar uns chutes na bunda. E olhe que o cara era gigantesco. A raiva às vezes faz com que cresçamos alguns decímetros.

Que bad trip! Sem show do Mercury Rev, agredido por um segurança por causa de meu amigo e sem grana no bolso. Para evitar mais baixo astral, fomos até um bar nas redondezas, onde uma amiga é bartender e daí poderíamos beber de graça e sossegados.

Sentamos num canto com as cabeças baixas, abrindo a boca depois de quinze minutos de silencio forçado. Culpei o cara por tudo aquilo, mas certamente a culpa maior tinha sido da gerência do Bowery Ballroom, incapaz de deixar claro o que iria acontecer com quem não tivesse crachá e entrasse muito cedo. Tudo bem. Aquela era uma sexta feira 13 e nós éramos dois jovens caiçaras/celtas supersticiosos. O negócio era esperar aquela noite passar, de preferência com a cabeça chafurdada.

Kika nos deu algumas cervejas na faixa. Secamos as garrafinhas em questão de segundos. Estávamos quase apaziguados da noite dura, até começamos a contar piadas um para o outro, as mais sem graça possível.

Falamos um pouco mal de Curitiba e esse tipo de coisa que dá prazer, quando percebemos um sujeito de óculos com lentes do tipo fundo de garrafa e cara de serial killer sentado do outro lado do bar, nos encarando. Ele se dirigiu a mim e se apresentou:

- Olá, eu conheço vocês, bem, é...o meu nome é Joshua, Joshua Moses, e eu sou fã de vocês, sabe? e...

- Cuma?

- É, afinal, vocês são aqueles caras que fazem aquelas festas sensacionais, não é? Aquelas, as famosas festas, as mais quentes de NYC, não é?

Eu e meu amigo nos entreolhamos e entendemos exatamente o que fazer. Afinal, depois de uma noite como aquela, nada melhor para esquecer a porcaria do que uma boa pagada de sapo.

- Ah...claro, claro!

- Sim, vocês são os caras de Wyoming que fazem raves com ecstasy de graça, não é?

- Oh sim, de graça, com certeza, só, é isso aí, senta aí, camarada, que tal pagar umas cervejas para a gente? Podemos até dar uns autógrafos e tal...

Joshua Moses sentou e pediu as cervejas mais caras da casa. Nada mal.

- Diga lá, Joshua Moses, esse nome é de profeta, não é mesmo? - perguntei, enquanto ia preparando alguma asneira na cabeça.

- Ah, sim, de certa forma, estou lutando para me tornar um profeta...

- É mesmo é? Bem, então tenho que te dizer algo. Nós, sabe, eu e meu chapa Klaus aqui, nós somos profetas. Nos temos três mil anos e fazemos parte de uma sociedade internacional de profetas, profetas de montanha, se é que você me entende...

O cara mudou a expressão facial de bobo-interessado paralouco-doentio.

- Ah, é? Profetas, é?

Levantou-se e começou a esticar o nariz em cima de mim e de meu amigo, se aproximando com seu narigão o máximo possível de nossas caras e queixos.

- Qual é a sua, cara? 

- Vocês não são profetas coisa nenhuma.

- E o que te levou a chegar a uma conclusão tão absurda ?

- Se fossem, teriam me repelido com sua energia. Mas, ao invés disso, deixaram que eu ultrapassasse o seu campo de força...

- Olhe, cara, isso não tem nada a ver. Nós, como profetas, sabemos que esse expediante de repelir as pessoas está por fora, entende? Nós somos amigáveis, compreendes? Nunca iríamos repelir um ser inferior só porque ele meteu seu nariz em nosso campo de força...

Nesse ponto, Joshua assumiu uma expressão tão insana que seu rosto teria servido muito bem como mascara de Halloween.

- Inferior? Sim! Eu sou inferior mesmo, e eu estou cansado dessa história de ser inferior aos profetas. Sabe, estou maluco por causa disso, ainda mais que, porra, cheirei um bocado de cocaína hoje e decidi algo, decidi por um fim com tudo isso de uma vez por todas, agora mesmo!

- Você quer dizer que vai se matar? Agora mesmo? Calma, cara, não se mate agora. Vai ficar sujo para nós. Espera a gente sair do bar!

- Calma, calma, vocês profetas só sabem dizer calma! Estou de saco cheio! Estou de saco cheio deste mundo!

Pensei: aí está uma ótima chance para testar algumas palavras apaziguadoras.

- Calma, irmão, não exagera, desgraçado. Sabe como que é, não lute contra o ritmo da vida, flua com ela - coisas do tipo.

- Flua com ela! Estou cansado desse papo esotérico de flua com ela, cara - e tirou uma pistola automática do bolso, apontando-a para sua cabeça. Ninguém viu nada - aliás, nesse ponto não havia mais ninguém no bar exceto um casal de turistas japoneses moderninhos que deve ter pensado que aquela cena era muito comum em Nova York e o negocio era, como bom hipsters, ignorar.

- Espera aí, cara, que mal-educado! Vai se matar assim, sem mais nem menos, vai nos deixar na roubada... pelo menos paga a conta antes, meu! Joshua então apontou a arma para minha cabeça e disparou. Não deu nem tempo de passar um filme cerebral de toda minha vida, aquele que passa na cabeça de todos que estão para morrer, pelo menos em filme. Antes disso, a água morna que bem poderia ser mijo atingiu minha testa.

- Ha ha ha ha! Adeus, profetas, cuidem-se, ha ha ha - Joshua jogou uma nota de cem dólares na nossa mesa, guardou a pistola de água no bolso e se mandou, rindo sem parar.

Pagamos a conta de vinte dólares com a nota do sujeito e fomos farrear com o resto da grana em outros cantos. Afinal, já era sábado 14.