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O encontro com um monstro

O encontro com um monstro

02/05/2013

Se uma criatura estiver em seu caminho, não se desespere. Ela pode ter outras prioridades.

Nathalia espetou a seringa na ampola e a encheu com o líquido transparente. Suas mãos não estavam tão firmes quanto esperava. Treinara para aplicar injeções diversas vezes e já tinha feito a tarefa uma dúzia de ocasiões. Mas o paciente, Seu Vicente, era um ser senil, frágil e muito doente. Temeu não achar sua veia e trazer ainda mais sofrimento para dentro daquele quarto, como se uma injeção mal aplicada fosse fazer muita diferença àquela altura dos acontecimentos. Felizmente, fez a agulha atravessar a pele manchada e flácida com facilidade. Trocou algumas palavras confortantes com o velho deitado, e foi embora.

O corredor do hospital estava especialmente lúgubre naquela noite. Da maternidade, que andava bem agitada ultimamente, não ouvia os choros dos recém-nascidos. Nos leitos do hospital, poucos pacientes. Nos dois meses que trabalhara naquele lugar, pensou muitas vezes no fato de pessoas lá dentro morrerem tão perto das que nasciam. Naquele momento, só pensou nos mortos e em seus fantasmas, prontos para a assombrarem, pulando dos cantos escuros do longo corredor, diretamente em suas costas, com as presas afiadas, prontas para sugar seu sangue ou algo assim. Nathalia obviamente não era fã de filmes de terror, e misturara tudo graças ao medo ancestral do escuro que herdara de seu pai, um homem que tinha mais de 3% de genes de neandertal em sua sopa genética.

O hospital devia mesmo ter muitos fantasmas. Cinquenta e sete anos mais tarde, uma equipe de TV levaria até seus corredores um estudioso com máquinas que supostamente podiam captar atividade sobrenatural na construção, e o sujeito declarou que o lugar era praticamente uma cidade de almas penadas.

Fora construído em 1884 e projetado dez anos antes por um famoso arquiteto. Tinha gabletes altas, trapeiras,  corredores com longos arcos decorados com relevos de plantas, nichos que deveriam abrigar estátuas religiosas, mas que por algum motivo estavam vazios, e muitos balaústres. Nathalia não sabia, mas o estilo do edifício era notadamente o da renascença do norte da Alemanha. Os que entendem do assunto sabem que sua composição não chega a ser assustadora como uma catedral gótica medieval. No entanto, o longo corredor, na penumbra da noite e sem iluminação graças à negligencia do administrador, parecia a própria entrada do Inferno.

Nathalia apressou o passo. Ao passar por um nicho, teve a impressão de que algo nele a espreitava. Sentiu o tradicional arrepio na espinha. Felizmente, uma figura vinha apressada em sua direção. Devia ser o doutor. Era corpulento, com ombros largos. Logo ficou claro de que a pessoa que vinha em sua direção não usava jaleco. Quando os dois estavam próximos o suficiente, uma luz vinda do pátio o iluminou.

Uma onda de terror se apossou da pobre enfermeira. Suas pernas começaram a tremer, e logo não ofereceriam mais sustentação. No primeiro instante, acreditou que por causa da péssima iluminação, seu olhos haviam lhe pregado uma peça. Mas a figura corpulenta parou à sua frente, deixando-se iluminar pelo fraco feixe de luz por mais alguns segundos. Nathalia viu um monstro de verdade, perto demais de si. Tinha a cabeça quadrada, uma testa protuberante, olhos moribundos, mãos gigantescas, ombros colossais e a cor cinzento-esverdeada característica de quem já bateu as botas há algum tempo. A criatura grotesca lhe dirigiu a palavra com certa urgência. Estava nervoso. No pouco conhecimento que tinha do tema, pelo menos aquela figura ela sabia o que era, e o que era capaz de fazer.

O horrendo morto-vivo deixou Nathalia e seguiu pelo corredor, correndo, grunhindo, buscando algo que a enfermeira não foi capaz de lhe dar.

O monstro já havia sumido, mas não a sensação de encontra-lo. Deixou cair a bandeja em suas mãos, e sem gritar, desmoronou no chão, desacordada.

Foi um zelador mexicano que a encontrou caída no meio do longo corredor. A moça também não tinha como saber, já que José não falava uma palavra na sua língua, mas o jovem a achava muito atraente e pensara inúmeras vezes em estratégias para se aproximar dela. O interessante é que Nathalia chegaria a ter um sonho erótico com o prestativo zelador. José a fazia lembrar de um professor por quem se apaixonara na adolescência.

Ela foi levada até a sala das enfermeiras, e tentou entender o que estava acontecendo. Tinha visto algo terrível se materializar naquele corredor, algo inumano, mas não ousava conta-lo às colegas que a fizeram se deitar por alguns minutos enquanto a examinavam. Uma delas suspeitou que Nathalia estivesse grávida, o que não seria possível, porque a moça era virgem, e morreria sem realizar suas fantasias com ninguém dali a dois anos, em um estúpido acidente automobilístico. Seu Vicente viveria 57 dias a mais que ela.

Antes de morrer, a enfermeira contaria à sua melhor amiga a terrível visão que a fez desmaiar no meio do corredor assustador daquele hospital numa noite fria de 1939. Essa amiga relataria o caso no Reader's Digest, e ganharia alguns trocos da publicação.

Ela escreveu que a chefe de Nathalia a tranquilizou, assegurando-lhe que provavelmente aquilo tinha sido fruto das poucas horas de sono e de todo estresse a que era submetida em seu novo emprego. Nathalia sabia que seu encontro com um monstro não era um delírio, mas não ousou conta-lo a ninguém. Assim que se recuperou, sentou-se na sala das enfermeiras e tomou chá com outra colega, conhecida como Jamy, uma incorrigível iconoclasta que sonhava se casar com um astro do cinema.

- Sabe quem está no hospital? Ele é muito famoso! Sua filha acaba de nascer! Não me lembro de seu nome. Gostaria muito de ir até a maternidade para vê-lo. Não é todo dia que temos atores famosos por aqui!

Jamy convenceu Nathalia de que uma visita rápida à maternidade lhe ajudaria a se recuperar do desmaio. Ao abrirem a porta que dá acesso à outra seção do hospital, as duas se depararam com um homem grande, prostrado com a testa contra o vidro por onde observava quatro bebês. Nathalia percebeu um fino feixe de saliva escorrendo do canto de sua boca. As duas se aproximaram cautelosamente.

- Parabéns, senhor! - disse Jamy, entusiasmada. - Qual é o nome dela?

- Sara - respondeu, com um sorriso. - Sara Karloff!!!

Nathalia, que ainda tinha uma boa quantidade de adrenalina correndo solta em seu sistema, teve uma breve síncope ao notar que aquele homem tinha maquiagem borrada no rosto. Aquilo a deixara perturbada.

- Nem tive tempo de tirar minhas roupas de trabalho! - completou o sujeito, com um sotaque britânico suave. Apontou para uma cadeira no canto da sala, onde jazia um paletó de tecido grosso e um objeto que se parecia com um capacete.

Jamy trazia consigo um pequeno caderno usado pelas enfermeiras para deixarem recados para as companheiras dos próximos turnos. O novo papai parecia feliz e relaxado, e a jovem aproveitou para lhe pedir um autógrafo, concedido sem demoras, com dedicatória para a dupla de profissionais. Enquanto o ator escrevia, Nathalia examinou-o por inteiro. Podia tê-lo visto antes, mas não conseguiu reconhece-lo. Jamy sabia tanto quanto ela quem era o famoso ator a sua frente.

Tinha uma caligrafia bonita e as duas não tiveram dificuldade para entender seu nome.

Não demorou muito para Nathalia descobrir que realmente tinha encontrado um monstro no corredor. Ela nunca mais o atravessou sozinha, quando por algum motivo as luzes não iluminavam todos os seus cantos.