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O 1.º livro do século

O 1.º livro do século

31/10/2014

Sejamos sinceros: o livro como existe hoje não vai morrer. Não logo. Não por causa do digital. Boas histórias no papel caminham de mãos dadas com leitores. São reflexos físicos e materiais de impressões duradouras. Servem gerações. Boas histórias tampouco caminham só. Precedem discussões, ainda mais na era em que a discussão (enquanto fenômeno) é uma fogueira acesa de lenha ininterrupta, despejando fagulhas ao vento e voltando a se reascender nem que por ritmo próprio. É sob essa luz que chega “Endgame”, livro de grandes ambições que vem cutucando o cocuruto.

Senta aqui. “Endgame - O Chamado” é o início de uma jornada planejada e com o fim do título oferecendo uma premiação palpável. É vendido como o PRIMEIRO GRANDE LIVRO do século 21, que supostamente entendeu o momento para oferecer um “a mais” ao novo leitor. É parte de uma trilogia que sofrerá impacto conforme o envolvimento de quem consome. O que “Endgame” cria é um circuito de quebra-cabeças através de sites, fóruns, investigação, suposição e Twitter. “Amplitude maior da obra”. A premiação, oferecida do bolso do autor, é de US$ 500 mil em moedas de ouro protegidas sob a jogatina de Las Vegas, no Caesars Palace. Em teoria, tudo muito bonito, muito lúdico,“faça sua lista de desejos”, torne-se HYPE.

Na prática, esse é o primeiro “livro a mais” ou apenas o exemplar mais midiático do que as obras já fazem por si só? O que as obras fazem? Instigam leitores, traduções, mesas-redonda, inquietudes, geram adaptações para outros meios, permeiam discursos políticos, entregam tendências, são vendidas online, dão origem a parques e nomes de rua. O que as obras do passado faziam? Relatavam guerras, agitações culturais, abraçavam mudanças comportamentais. Natureza, máquina, primeiras viagens. Vinham do PAPO VAI PAPO VEM e eram entregues na mesma essência. Uma obra nunca esteve parada. Vide o impacto atual de “Apanhador no Campo de Centeio”, dos beats, dos russos, dos navegadores e até da Bíblia.

 

 

“Endgame”, nesse aspecto, se vende como o livro que entende essa percepção e oferece uma premiação ao amigo leitor sortudo que tiver gana de desvendar todos os caminhos. Acho pura jogada. Mas vamos entender o que está rolando.

Fato 1. James Frey e Nils Johson-Shelton são os autores. O primeiro é dono da Full Fathom Five, editora definida por parte da imprensa americana como “fábrica de livros”. O motivo? Eles fazem um livro por semana. Como? Muitos braços trabalhando. O outro autor (Shelton) é um dos muitos contratados pela casa. Ele recebeu o piloto do projeto e tocou a redação bruta. Depois Frey revisou, aparou e entregou o projeto para a criação do puzzle. Foi assim que nasceu o livro “Eu Sou o Número Quatro”, já adaptado para o cinema.

Fato 2. Para entrar no jogo pós-leitura de “Endgame”, é preciso acessar sites obscuros, teorias conspiratórias, história de civilizações antigas e vídeos. Também existe um game de realidade aumentada para mobile no qual a localização real do jogador é um espaço a ser conquistado no mundo virtual. O jogo ainda não foi lançado.

Fato 3. Sinopse, via “O Globo”. Meteoros começam a atingir a Terra e um grupo de 12 jovens do mundo inteiro, representantes de 12 civilizações que deram origem à humanidade, são convocados para um desafio. As civilizações foram criadas por alienígenas 12 mil anos antes dos fatos do livro, que anunciaram sua volta para promover um “jogo”. Os jovens precisam encontrar três chaves para vencer.

 

 

Qualquer semelhança com “Jogos Vorazes” não é coincidência. Fim do mundo, vida extraterrestre, civilizações antigas. Tudo muito pronto na cultura infanto-juvenil. Trilogia (sem novidades). Já foi vendido para TV e cinema (sem novidades). Está vindo na esteira do fenômeno “True Detective”, que ampliou seu arco ao correlacionar a trama base com a história de um livro antigo (sem novidade).

“Eu acho que as pessoas estão prontas para experiências de entretenimento que lhes chegam de uma forma contemporânea”, diz John Hanke, dono da Niantic, que está ajudando na produção do game. “As plataformas se relacionam ao mundo do livro, mas também é possível desfrutá-las separadamente. Você pode até ler a história sem participar do enigma”, diz Frey, o autor, numa defesa.

Minha impressão é que um LIVRO-DESAFIO que recicla o que é o LIVRO e o que é DESAFIO, produzido por uma FÁBRICA para um momento de consumo imediato é uma ideia prepotente. Mas é só uma impressão. Ainda mais quando a Marvel acaba de lançar seus projetos para o futuro. A casa das ideias sempre teve grandes personagens em mãos, soube usá-los nos quadrinhos, pouco na TV e criou um arco novo de adaptação-formação de plateia no cinema. Sendo que tudo isso sempre esteve extremamente ligado com a realidade. Debatido à exaustão.

Começar um livro pela caixa de comentários pode ser um tiro no pé. Mas é só uma impressão.