Siga
(Nem) Tudo é Verdade

(Nem) Tudo é Verdade

16/02/2012

Neste ano completam-se sete décadas da passagem de Orson Welles pelo Brasil. Ele veio ao país como um dos embaixadores da política de boa vizinhança instituída pelo presidente americano Franklin Delano Roosevelt – no papel, um programa para aproximar a cultura tupiniquim (e de outros países latinos) dos EUA, e vice-versa. Tratava-se na verdade de um artifício para alinhar o terceiro mundo com os interesses americanos – estávamos, afinal, em meio à Segunda Guerra Mundial.

Welles chegou ao Rio de Janeiro com uma câmera na mão e quase nenhuma ideia na cabeça. Quase: ele sabia que queria filmar o Carnaval. E assim o fez. No processo, se aproximou de figuras como Grande Otelo, cultivou romances com beldades locais e viu pela primeira vez na capa da revista O Cruzeiro uma foto da atriz Rita Hayworth. Decidiu ali mesmo que casaria com ela no seu retorno aos Estados Unidos (coisa que, de fato, aconteceu no ano seguinte, em 1943).

O planejamento das filmagens, no entanto, era praticamente inexistente. Além disso, o perfeccionismo de Welles fez com que rolos e rolos de filme fossem desperdiçados. A RKO, estúdio que financiava o projeto, percebeu aonde aquilo ia dar e resolveu fechar a torneira, cancelando o filme. Welles costumava contar uma história sobre esse episódio, que pode ou não ser verdade.

Segundo ele, havia a intenção de filmar uma cerimônia de Candomblé. Para a isso, Welles teria recebido em seu escritório um pai de santo (a quem ele se refere como “um feiticeiro”), que pedia dinheiro para roupas novas e itens necessários à cerimônia.

O telefone toca, e Welles vai atender em outra sala. Eram os executivos do estúdio, comunicando ao cineasta a decisão de encerrar o projeto. O diretor então retorna para a reunião com o “feiticeiro”, sem saber como lhe dar a notícia. Mas ele não precisou. O pai de santo não estava mais lá. Sobre a mesa de Welles, o roteiro do filme, cravado por um punhal decorado com uma fita vermelha.

Rebelde por natureza, Welles decidiu estender sua estadia no Brasil. Com o resto de recursos que ainda tinha, ele se dirigiu a Fortaleza com o intuito de filmar uma história que haviam lhe contado: um grupo de pescadores saiu do Ceará em uma jangada com destino ao Rio de Janeiro. O objetivo era reivindicar ao presidente Getúlio Vargas melhores condições de trabalho.

Disposto a reencenar a história, ele chegou à cidade e encontrou o líder dos pescadores, um homem conhecido como Jacaré. Com um elenco de atores amadores, o diretor registrou em glorioso preto e branco a saga daquela gente.

Porém, o filme seria marcado por uma tragédia. Em certo momento, a jangada com os pescadores virou em pleno mar. Jacaré, que interpretava a si mesmo, ficou preso embaixo da embarcação e morreu afogado diante da câmera de Welles.

O punhal com a fita vermelha. O filme estava amaldiçoado.

Welles voltou para os Estados Unidos. A lenda dizia que o diretor, tomado pela superstição e pelo desgosto com a experiência, havia jogado os negativos no mar. O filme brasileiro de Orson Welles nunca seria visto.

Esta versão da história perdurou até o início dos anos 90 1985, quando um arquivista da Paramount encontrou algumas latas de filme com uma etiqueta que dizia apenas “Brazil”. Ciente da história, ele reconheceu as imagens ao vê-las.

Em 1993, oito anos após a morte de Welles, o filme foi finalmente montado sob o nome de "It’s All True – É Tudo Verdade", um documentário que conta este episódio. Além do filme sobre o Carnaval ("A História do Samba") e sobre Jacaré e seus homens ("Quatro Homens em uma Jangada"), o documentário também resgata as filmagens feitas no México ("Meu Amigo Bonito").

A aventura brasileira de Welles rende lendas até hoje. Uma das melhores diz respeito ao filme "Soberba", a segunda investida do diretor, que foi rodada logo após "Cidadão Kane". O filme foi montado à revelia pela RKO quando Welles estava no Brasil. O estúdio ignorou completamente as instruções deixadas pelo cineasta por considerar que o resultado seria muito experimental. Dessa maneira, Welles renegou o filme. Mas a parte interessante da história é a seguinte: ele teria trazido uma cópia com a sua versão para o Rio. Ou seja, talvez algum armário empoeirado na Cidade Maravilhosa abrigue uma obra-prima perdida do cinema.

Será verdade? Assim como aconteceu com "It´s All True", o tempo dirá.