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Franz Quem?

Franz Quem?

25/10/2012

Quando morava em Nova York, meu amigo Franz Calcutá sempre me colocava em enrascadas por não ter muito bom senso, como na vez em que fomos presos depois que um guarda o flagrou dirigindo e bebendo vodca ao mesmo tempo. Eu era apenas um passageiro, só que me dei mal porque o cara inventou uma mentira feia para se safar e me usou como álibi. Não vale a pena contar a lorota aqui, eu teria muita vergonha disso, inclusive. O fato é que Franz sempre fazia dessas. Mesmo assim, quando me chamava para uma caminhada em um parque no norte do estado (já que nós dois tínhamos até carteirinha do Clube de Montanhismo de Nova York!) ou me convidava para ir numa festa no lendário Chelsea Hotel onde Keith Richards seria DJ, eu não hesitava em aceitar os convites. Sempre sabia que provavelmente seria uma roubada no final.

Ainda tremo de frio ao lembrar daquela caminhada. Franz tinha me dito que a trilha terminava em um albergue. Era só uma cabana desabitada e sem calefação. Numa noite gelada de Outono, numa latitude onde quase se podia ver a aurora boreal. Quando saímos para procurar lenha para uma fogueira que nos salvasse da hipotermia, senti uma espécie de areia caindo das minhas sobrancelhas. Eram cristais de gelo, recém-formados da umidade de minha respiração. “Franz, nunca mais!”, disse a ele, pouco antes de embarcarmos em uma nova empreitada do tipo, com mais roubadas e sofrimentos gratuitos.

A festa do Chelsea Hotel foi o seguinte: tinha um plano mirabolante no qual se passaria por uma certa pessoa famosa com quem é um pouco parecido. Franz saía com a secretária do ator, e sabia que o figurão estava na Nigéria fazendo trabalho voluntário. Conseguimos entrar, mas fomos descobertos bem quando eu me preparava para comer um canapé da mesma bandeja que servia Kim Bassinger (ela me cumprimentou e logo depois fui escoltado para fora por um brutamontes).  

Naqueles anos em que vivi na Grande Maçã, Franz estava no Reino Unido, mas voava mensalmente para os States e já chegava se proclamando o rei da esbórnia. E raramente, um programa com Franz Calcutá acabava sendo excepcionalmente bom e sem problemas. Ou quase. Como quando levamos essa hoje bem conhecida, (muito famosa mesmo) cantora pop para tomar banho de rio no estado vizinho, no dia mais quente do ano. A então aspirante à estrela era amiga de longa data da mesma moça que trabalhava para o ator bonzinho do voluntariado africano. Fomos os quatro no carro de Franz, nos divertimos muito. Eu quase beijei a cantora, ela colocou sua mão esquerda em minha coxa, se bem me lembro, e tudo teria sido bem bonito, não fosse por uma abelha que a picou no seio esquerdo e a fez ter um ataque de pânico, piorado pelo álcool que Franz a fez beber depois de levar uma ferroada. Não estou falando de álcool etílico.

Nascido em Joinville, filho de um alemão obcecado por discos voadores e uma argentina de família judia tradicional, Franz herdou uma fortuna de seu avô e nunca teria que trabalhar. Mesmo assim, valeu-se de sua cidadania europeia e da conta forrada e passou grande parte de sua vida nas ilhas britânicas, onde brincou de jornalista musical em Londres numa época de ouro. Escreveu artigos para a Melody Maker, sendo seu melhor momento a entrevista que fez com Robert Smith do The Cure nas vésperas de a banda lançar o hoje clássico disco Head On The Door. Depois disso (e de ficar amigo próximo de Ian McCullogh, do Echo & The Bunnymen, com quem tomou vários porres e que acabou virando fã do Brasil por sua influência), Franz passou anos trabalhando como skipper em veleiros de milionários no Mediterrâneo. Nas horas vagas, seguia suas bandas prediletas: Pop Will Eat Itself, Teenage Fanclub, Ride, para citar algumas.

Ele era aquele cara que tinha tudo para ser o maior chato, um chato endinheirado, que se hospedava no mesmo hotel dos Happy Mondays em Tóquio e insistia em pagar umas biritas para o vocalista Shaun Ryder (pra não dizer, outras coisas).  Mas todos esses artistas gostavam dele. Franz sabia hipnotiza-los, e muitas vezes, eles é que o seguiam.  Quando Franz se casou em Curitiba, Bez, o doido dançarino dos Mondays, ameaçou vir ao Brasil só para a festa.  Isso foi em 2001. Eu o conhecera nove anos antes em um show do Primal Scream em Paris. Estava com uma turma de alcoólatras que naqueles tempos eram chamados de “Euro Trash”. Escondido no meio dos anônimos da gangue de Franz havia um norte-americano de cabelos brancos espetados que agia como se fosse seu melhor amigo. Meses depois, descobri que era Jim Jarmusch.

Naquela época eu era obcecado pelos escritores beats, e teimei em ver uma espécie de Neal Cassady nele. Mas Franz os abominava, chamava-os de viajões, escritores de segunda categoria. E desdenhava Bukowski. Por outro lado, era fanático por Fernando Pessoa, e insistia em me dizer: “Esse cara tinha um pacto com o demônio”.

Pouco depois de se mudar para Curitiba, Franz se tornou um dos mais ativos bastiões do rock independente local. Escreveu sobre todo mundo que importava no começo do novo milênio, fez entrevistas memoráveis com bandas como Feichecleres e ESS, e criou um discurso muito bem embasado sobre a qualidade do rock independente feito no Brasil. Ele convenceu três ou quatro leitores do extinto site O Bule que a genialidade musical estava em toda a parte, e chegou e me dizer: “Tua banda não é nem um pouco pior do que o Wilco. Mas não é melhor do que The Band de jeito nenhum”. É mesmo?

Mas Franz, apelidado de Calcutá por seu pai porque era uma criança tão franzina quanto as que tinha visto na cidade indiana quando lá foi adido cultural da Alemanha, não conseguia parar um minuto sequer sem inventar moda ou se meter em encrencas, e logo se separou de sua esposa curitibana, uma doce polaca da terra, deixando a cidade para nunca mais morar nela. Curitiba perdeu. Mas o Lago Ness, na Escócia, ganhou: Franz fez parte de uma equipe internacional cujo objetivo era descobrir se o tal monstro existe ou não. A última imagem que vi dele é uma foto na qual meu amigo posa na frente de Boleskine, o castelo mal assombrado que pertenceu a Aleister Crowley e que há algum tempo é de  Jimmy Page, às margens do lago escocês.

Sei que mais ou menos nessa época, ele se entregara a uma obsessão: os tubarões brancos, e saía de barco com pesquisadores para observar os animais devorando em frenesi carcaças de baleias mortas perto da costa da África do Sul.

Essa semana ouvi um boato de que teria morrido. Uma das fraquezas de Franz sempre foram as drogas (ele gostava de se vangloriar de ter fumado crack com Amy Winehouse. Não duvido que tenha acontecido mesmo – ele sempre foi amigo de pop stars junkies).  A outra eram as mulheres. Dizem que levou uma facada de uma garota viciada em Glasgow, na Escócia, onde estava vivendo, mas ninguém confirma isso. Na penúltima vez que conversamos no Facebook, disse que tinha abandonado o montanhismo, uma de suas paixões, e que nenhuma banda da atualidade o empolgava.  Nem mesmo o Tame Impala, um grupo que eu sempre imaginei que ele amaria, por diversas razões. “Tame quem?”. 

Franz não tem mais parentes vivos, e depois de deliberar com amigos mútuos, decidi fazer uma pesquisa em obituários para saber se o boato da morte procedia. Nada. Ninguém sabe de absolutamente nada. Sua ex me assegurou que ele está bem vivo, mas ela mesma não tem certeza de nada, e nem quer ter.

É possível que esteja agora mesmo seguindo o Tame Impala pelo mundo, depois de eu lhe dizer que achava chocante não conhecer os australianos. Franz levava muito a sério tudo o que lhe dizia. Foi quem financiou a viagem da minha banda, Bad Folks, pela Europa em 2004 só porque eu disse que tinha certeza que éramos o combo mais importante no Hemisfério Sul naquele momento.  E não estava falando de sanduíches. Na mesma hora que afirmei essa baboseira, Mr. Calcutá tirou seu talão de cheques absolutamente amassado do bolso e preencheu um com uma quantia suficiente para pagar passagens e cervejas no velho mundo. Tive que aceitar.

Espero ter descoberto seu paradeiro no próximo post, mês que vem. Beijo.