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Direito autoral não rima com música digital

Direito autoral não rima com música digital

29/10/2012

Antes que o título contraditório faça com que você desista de ler o texto, deixe-me contextualizar. Faz mais ou menos um ano que comecei a ouvir dubstep – um estilo musical nascido em Londres em 2001 que, com influências do dub jamaicano e dos bpms acelerados da música eletrônica, resulta em uma sequência de acordes digitais com ênfase em sub graves, bass e sons de baixa freqûencia. O dubstep, na verdade, é só mais um elemento da promissora “bass culture”, que agrega também outras vertentes britânicas como o grime e o bassline.

Esse emaranhado de vertentes, que nasceram em um curto espaço de tempo e dentro de um único país, é apenas uma amostra do que vem acontecendo com o cenário musical no que podemos chamar genericamente de “era digital”. Agora você deve estar se perguntando: “Tá, mas e dái? O que isso tem a ver com direitos autorais?”. A popularização de equipamentos e de softwares de produção, unido ao fluxo de informações que a internet propicía, além de incentivarem as produções independentes e o desenvolvimento da música, acabam por liquidar a preocupação com direito autoral. Sabemos que o hit de Rod Stewart dos anos 80 “Do You Think I'm Sexy?” é um plágio descarado de “Taj Mahal”, lançado por Jorge Ben Jor nos anos 70. Na época, o assunto gerou bastante polêmica e até um processo mal sucedido. Stewart acabou doando os direitos autorais da música para o Fundo das Nações Unidas para a Infância, esquivando-se das multas. Já nos anos 90, com a introdução de samples nas produções, a coisa mudou. O cantor Vanilla Ice, dono do single “Ice Ice Baby”, conseguiu entrar em um acordo na justiça com o Queen e David Bowie após ter adicionado na batida de sua música um trecho de “Under Pressure” – lançada pelos rockeiros em 1981.

http://www.youtube.com/watch?v=rog8ou-ZepE

Acontece que hoje em dia, o sample não é só um elemento utilizado pela maioria dos artistas pops, mas também o precurssor de muitos estilos que tem como base a produção digital. As brigas por composições hoje já chegam à nível de axé music versus metal, como no caso do plágio feito pelo Parangolé. Em “Tomba aê tomba”, o grupo bahiano nem chegou a modificar os riffs do guitarrista Kiko Loureiro na música “Nova Era”, do Angra. Porém, as discussões tiveram um rumo mais moderno que os tribunais de justiça. Os músicos acabaram resolvendo o plágio através de uma discussão via Twitter.

http://www.youtube.com/watch?v=Ww5VN5mU1H0

 

A concepção de direito autoral, no cenário cada vez maior da música alternativa, tem um valor ainda menor. Na verdade, em muitos casos o sample nem chega a ser reconhecido, porque as músicas se propagam de uma maneira tão rápida e em tantos nichos que as informações sobre a produção não chegam a ser relevantes. Esse déficit é alimentado pela enorme quantidade de conteúdo que consumimos e a maneira como ele nos atinge.

Para exemplificar o que acontece, vou pegar como exemplo um artista de dubstep que eu tenho ouvido nos últimos meses. O produtor e DJ Borgore é israelense e lançou seu primeiro EP, “Gorestep Vol. 1”, em 2009. No ano de estréia ele já divulgou mais dois álbuns, todos pela Shift Recordings. Em 2010, fez questão de lançar dois EPs com seu próprio selo (Buygore), um disco pela Audio Freaks e outro pela Tribal Bass. De lá para cá, ele fez mais cinco lançamentos. Hoje, com 29 anos de idade e quatro de carreira, Asaf Borger já remixou mais de 15 artistas – entre eles Britney Spears, Gorillaz, M.I.A., LMFAO, Dev, Waka Flocka Flame e Metallica. Apesar dos remixes serem autorizados e estarem todos listados na Wikipédia, nem todas as informações sobre as produções do israelense são de fácil acesso.

Quando ouvi no YouTube a música “My Favorite Things”, do Borgore, sabia que a composição, a letra e os acordes eram bem familiares, mas tinha certeza que não era nenhuma versão autorizada de outra música. Depois de algumas pesquisas fui descobrir que a “My Favorite Things” original fazia parte de uma produção da Broadway de 1959. Além disso, o que o DJ sampleou foi na verdade a versão interpretada pela cantora e atriz Julie Andrews no musical “The Sound of Music”, de 1961. E a letra, que falava de gotas rosas, pôneis coloridos e até tortas de maçã, foi substituída por uma paródia sobre “haters”. A canção do fim dos anos 50 faz parte da cultura popular. Ela não virou só um dubstep mas como ganhou versões de natal de 18 artistas diferentes, e outras versões de mais 14 músicos – entre eles Björk, Outkast e Panic! At The Disco. Ampliando o cenário, desenhos como The Animaniacs e Dragon Ball Z, e também a série musical Glee, já utilizaram a música.

http://www.youtube.com/watch?v=33o32C0ogVM

No fim das contas, a maior parte da inúmera quantidade de pessoas que consumiu todo esse material não faz a menor ideia de onde “My Favorite Things” foi tirada. Mesmo que um determinado grupo dessa massa de espectadores reconheça os acordes ou pesquise sobre o tema (ou até mesmo acabe caindo de paraquédas nesse post), gêneros como o hip-hop, o dubstep e a música eletrônica – que têm como base a música digital – vão cotinuar produzindo incontáveis samples. A realidade tecnológica atual também permite que qualquer músico menos conhecido seja copiado, e não somente autores de hits que atravessam décadas. Divulgada frenéticamente na rede, a música digital passa a ignorar as leis de direito autoral em todo país que não atribui fortes restrições ao uso da internet.

http://www.youtube.com/watch?v=c4AtNuEfCNs