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Asas, ases e cordilheiras

Asas, ases e cordilheiras

27/11/2013

Se o piloto perdesse a rota de vista, bastaria olhar para as montanhas abaixo e seguir a trilha de aviões espatifados nas encostas. Esse rastro de desastres fez com que o general estadunidense Albert C. Wedemeyer declarasse que voar na "Corcova" era o feito mais perigoso e difícil da Segunda Guerra Mundial. Quando notou que o C-87 estava totalmente perdido entre pináculos de nuvens e montanhas geladas de mais de 7 mil metros, o piloto Robert Crozier não pôde contar com isso: a noite já caíra, e apesar de terem deixado a tempestade e as nuvens para trás, o maior problema agora era outro: o combustível estava acabando.

Era 1943, e aquela era a rota aérea de 844 quilômetros de abastecimento entre as bases aliadas de Jorhat, na Índia, e Kunming, na China, que sobrevoava uma das regiões mais montanhosas do planeta. O normal era que os aviões fossem surpreendidos por tempestades, rajadas de vento capazes de danificar asas, empurrar aeronaves contra os picos e um tipo de turbulência que acabava com o estômago dos aviadores mais destemidos. Isso sem falar nos inimigos japoneses, que frequentemente patrulhavam a região. Depois de deixar comida na base chinesa, Crozier, o copiloto Harold McCallum, o operador de rádio Kenneth Spencer e os engenheiros militares William Perram e John Huffman voltavam para a Índia em um voo relativamente calmo, até darem de cara com um sistema atmosférico com forças comparáveis às de um furacão, que os tirou de seu caminho e dificultou a radionavegação.


Foi então que um dos maiores pesadelos de um aviador se confirmou. Os motores pararam de funcionar e os cinco foram obrigados a abandonar a aeronave, de paraquedas. Miraculosamente, todos sobreviveram. Crozier, McCallum e Spencer pousaram na mesma área. Perram feriu uma das pernas ao se chocar contra uma montanha, onde ficou sozinho por três dias, até ser resgatado por nativos que o levaram até Tsetang, onde encontrou Huffman.


Os cinco se reuniram em seguida e foram cercados por habitantes da vila. O espanto foi mútuo. Os militares pensaram que podiam estar em território nazista, depois de notarem suásticas pintadas nas paredes de algumas construções. Eram símbolos budistas. As expressões dos nativos não eram nada amistosas, apesar de a multidão ovacioná-los, certamente uma forma de espantar espíritos malignos. Um senhor se aproximou, falando em um hindustani rudimentar. Crozier perguntou se estavam na Índia. "Não, no Tibete", disse o homem. O Tibete era um dos lugares mais misteriosos do mundo. Hermeticamente fechado, ele cativava a imaginação do Ocidente, que pouco sabia sobre o país proibido. Era governado pelo atual Dalai Lama, que na época tinha apenas oito anos. Profundamente influenciados por um tipo de budismo impregnado de superstições e conceitos que para os ocidentais pareciam absolutamente alienígenas, os costumes do Tibete ao mesmo tempo encantavam e assustavam os estrangeiros.


Monges budistas se aproximaram, entre eles um de origem inglesa. Os aviadores foram levados até casas de barro e ganharam botas, casacos de peles e gorros. Depois, o ministro das relações exteriores do Tibete arranjou para leva-los à espetacular capital, Lhasa, dominada pelo majestoso palácio de Potala. Aliada dos Estados Unidos, a China naturalmente quis abrigar os norte-americanos em sua missão, o que revoltou os tibetanos, que já se ressentiam da presença do gigante oriental em seu país e sua iminente invasão. O grupo quase foi apedrejado por isso. Em seguida, ficaram sob a tutela da Missão Britânica, e enquanto sua saída do país era programada, os cinco se viram peças de um jogo de xadrez político intrincado entre o Tibete, a China e os britânicos.


Para evitar que fossem o pivô de um incidente internacional, sua viagem foi adiantada, e tiveram que partir bem no meio do rigoroso inverno tibetano. Fizeram a viagem até a Índia em apenas 30 dias, quando se levava em média 60. Cruzaram passos cobertos de neve entre as montanhas, com o ar rarefeito e enfrentaram tempestades geladas, em uma jornada épica e heroica. Poucas histórias de sobrevivência são tão impressionantes quanto essa, que foi contada por Richard Starks e Miriam Murcutt no livro Lost In Tibet. Mas ela não é a única.


Os aviões que faziam a rota da "Corcova" frequentemente voavam extremamente pesados. Muitas vezes, eram carregados por soldados que sabiam muito pouco sobre centro de gravidade e distribuição de carga em uma aeronave. Na hora em que uma rajada de vento desafiava a estabilidade de uma aeronave, isso podia ser fatal. Aviões também  transportavam tropas inteiras entre a Índia e a China. Uma das histórias mais interessantes fala sobre um avião da Força Aérea dos Estados Unidos cheio de soldados chineses que teve problemas por causa do gelo que se formou na fuselagem. Não havia um paraquedas sequer a bordo. O piloto então decidiu fazer um pouso de emergência, e ordenou que o copiloto e o operador de rádio saltassem quando estivessem voando baixo, pouco antes do pouso. Os dois caíram em cima de uma árvore que abrandou a queda. Passaram quinze dias caminhando em uma selva cheia de animais peçonhentos, mosquitos carregados de malária e, supostamente, caçadores de cabeças, até serem resgatados por nativos. Quando chegaram à base, descobriram que o avião havia se estabilizado depois que o abandonaram, chegando ao seu destino são e salvo.


Os aeronautas da rota viviam sob grande estresse. A China dependia dessa operação, e ela não podia ser interrompida nem mesmo nos piores climas. Por conta disso, muitos tinham o que os médicos da base chamavam de "Loucura da Corcova", uma espécie muito particular de "neurastenia". Alguns ficavam inaptos para qualquer atividade aérea. Outros ignoravam os riscos e se comportavam de maneira excessivamente destemida durante as missões. Vários pilotos se tornaram lendários por sobreviverem diversas missões. Mas o índice de mortalidade era bem alto: 500 aeronaves foram perdidas na rota e nada menos que 1.314 pessoas morreram nela em quatro anos.


É um dos episódios menos conhecidos da Segunda Guerra Mundial, e uma dos mais impressionantes. A "Corcova" formou alguns dos maiores ases da aviação de todos os tempos, como o Capitão John Porter, e o próprio Robert Crozier, além de ter sido vital para a vitória dos aliados.