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Sobre subir uma boa montanha

Sobre subir uma boa montanha

01/08/2013

Em algum lugar na Serra do Mar. Foto: Luciane Stocco

"Se você não consegue entender que existe algo no homem que responde ao chamado desta montanha e ao qual ele sai para atender, que a luta é a própria luta da vida para subir e sempre subir, então não entenderá por que escalamos. O que ganhamos com essa aventura é alegria pura. E a alegria é, afinal, a razão da vida. Não vivemos para comer e ganhar dinheiro. Comemos e ganhamos dinheiro para desfrutar a vida. É isso o que a vida significa e a razão da própria existência".
— George Leigh Mallory (1886–1924)

Sempre usei uma célebre frase de Mallory, o lendário montanhista britânico, para responder a pergunta "Por que vai subir mais uma montanha"?

- Porque ela está lá.

Sei bem que a incompreensão de algumas pessoas acerca do extremo prazer de se percorrer sendas nas encostas, flancos, cumes e cristas de montanhas na maioria das vezes acaba quando elas o experimentam. Conheço vários indivíduos que consideravam o montanhismo uma grande perda de tempo, e que após suas primeiras ascensões, entendem e compartilham deste profundo sentimento, que pode ser tão aditivo, arrebatador e irracional quanto as sensações causadas pelo tabaco, o álcool e as drogas. Com a diferença de que o montanhismo tende ser bem mais saudável (salvo algumas exceções que serão tratadas logo mais).

É possível que parte dos aldeões do deserto não tenham entendido quando Maomé foi orar na montanha. Estes não atentaram para o fato de que as altitudes são comprovadamente melhores para experiências místicas. No cume de uma montanha, não há gente, e quando há, são poucos viventes para interromper o processo. A beleza das vistas panorâmicas ajudam o peregrino a vislumbrar a "beleza suprema da criação do Senhor". Quando a montanha tem altitudes superiores a 2 mil metros, principalmente a partir dos 3.500 metros, o ar rarefeito e a privação de quantidades usuais de oxigênio no cérebro podem provocar alterações sensoriais que se aliadas a propósitos místicos, tendem a permitir entendimentos profundos sobre a vida e a existência.  Incas, guaranis, tiroleses, trentinos e outros povos sabiam muito bem disso. Mas não é preciso ir aos Andes para se experimentar algo assim. Um passeio tranquilo e sem dificuldades em um dos cumes mais baixos da Serra do Mar que flanqueia a costa brasileira e que raramente atingem mais de 2 mil metros já é o suficiente.

Alguns amigos, daqueles que gostam de usar frases de efeito como, "vamos colocar uma escalada rolante ali naquele morro", costumam ter fobias violentas em relação às serras, ou desdenham as montanhas e a natureza como um todo, muitas vezes porque elas representam esforços físicos e psicológicos que julgam intransponíveis. Gostaria de lembra-los que o ser humano viveu em íntimo contato com a natureza por mais de um milhão de anos, e que foi só nos últimos seis mil que começou a passar seus dias protegido pelas cidades, deixando o nomadismo de lado para adotar uma vida mais sedentária. A memória de mil milênios está em cada célula de nossos corpos, e há quem acredite que a reconexão com estes traços ancestrais são essenciais para as resoluções de grande parte dos problemas que nossa civilização hoje enfrenta. A montanha pode ser um facilitador deste processo.

Acredito piamente no poder restaurador de uma boa caminhada em ambiente natural e/ou selvagem. Mas antes que o editor se sinta tentado a tirar este texto do ar por considera-lo uma peça de autoajuda barata, gostaria de provar que o assunto aqui é mundano, e estarei a relatar um tipo de experiência montanhística prosaica que repito sempre que posso, desde minha adolescência.

Frequento a serra da Melança, também conhecida como Serra do Emboque, em Piraquara, Paraná, desde 1990. Ela está conectada ao conjunto do imponente Marumbi, uma das montanhas mais bonitas e emblemáticas do Brasil. Há alguns dias, subi o Acambeúna, um morro desta serra muito acessível de apenas 1.396 metros de altitude, que tem um cume cheio de vistas espetaculares. Comecei a caminhada no final de uma tarde ensolarada e fria (que é o tempo ideal para se praticar montanhismo por aqui). Minha intenção era assistir ao por do sol sozinho e observar as estrelas, já que havia promessas de uma chuva de meteoros para aquela noite.

A caminhada até o cume não dura mais do que uma hora. Cruzei muitos excursionistas descendo o morro com certa pressa, querendo chegar a sua base ainda de dia. Ocorre que o Acambeúna é frequentemente visitado por pessoas novas ao montanhismo por ter uma ascensão fácil, trilha boa e acessibilidade. Muitos não querem ficar no meio do caminho depois do escurecer, mas é exatamente esse o momento que mais espero durante toda minha semana. Quanto mais altitude, menos pessoas, até que me vejo só, acima de uma extensão indizível de verde, uma das últimas grandes áreas preservadas de Mata Atlântica do país. Passam andorinhas raspando em rasante num paredão à frente. O sol se aproxima do horizonte, o céu azul se enche de tons de vermelho, aviões passam ao alto, e lembro que Jack Kerouac morria de medo das montanhas, até que seu amigo Gary Snyder, um sábio poeta montanhista, apresentou-lhe as virtudes das sierras da Califórnia. Tenho esse livro em minha mochila, será um presente a alguém especial que me espera lá embaixo.

Chego no cume bem quando o sol toca algum ponto da serra do segundo planalto, perto de São Luís do Purunã, para além da capital paranaense. O ar cristalino me permite ver Curitiba à distância, a torre da Telepar, a represa da Caiguava. De meu quarto, na cidade, poderei ver bem este morro até o dia que a especulação imobiliária tirar mais uma porção de minha vista para a Serra do Mar. Já desde o Acambeúna, tudo que vejo é uma massa cinzenta de prédios que me parecem palitos de dente sujos enfileirados. O panorama às minhas costas é magnífico: a baía e a cidade de Paranaguá acendem suas luzes. Vejo navios se enfileirando para atracarem no porto. Vejo a Ilha do Mel e a Ilha das Peças. E ao meu lado direito, uma fileira de montanhas e promotórios cobertos por florestas densas, selvagens.

Com a chegada da escuridão, estrelas, e quando a noite se instala por completo, dois satélites artificiais atravessam o céu. Aviões passam o tempo todo e em diferentes altitudes. Nada de estrelas cadentes. Está muito frio, mas vim preparado. Tiro da mochila uma térmica e tomo goles de água quente com mate. Naquele momento, sou a única pessoa na montanha. Ninguém mais tem este ângulo de visão de toda a região do primeiro planalto, embora eu saiba que nos outros morros e serras daqui, muitos devem observa-lo também. Só essas vistas já teriam valido o pequeno esforço. Mas há muito mais: uma tranquilidade indescritível. E algo vagamente mágico e sensual no ar. Já se disse que ao conquistar a montanha, um falo geográfico, o homem adquire o feitiço sexual da potência. Uma variação bem interessante: ele sobe os seios da Terra para em seus mamilos sorver o leite que nutrirá sua alma. Lembro de um taxista aimará do sul do Peru me explicar isso.

Adicionalmente, há a excelente perspectiva de um bom churrasco regado a muito vinho quando eu descer a montanha, deleites justificados pelo esforço físico e a contemplação.

Descer a montanha é tão importante quanto subi-la. A grande cartada de Zaratustra foi sacar isso. Infelizmente, o aspecto pouco saudável da montanha tem a ver com a não compleição deste ato. O isolamento só é válido se precede o encontro com o outro. As montanhas do mundo todo estão cheias de eremitas & seus imitadores que se privaram da humanidade para buscarem algo na montanha que não está nela. Quando morrem, deixam não apenas suas carcaças para os urubus, mas também quaisquer de suas descobertas. Sorte deles. Azar o nosso.

A montanha também pode ser muito perigosa. Quando são muito altas, sujeitas a ventos catabáticos violentos, avalanches, tempestades elétricas e ar demasiadamente rarefeito, há quem simplesmente não consiga as descer com vida. Mallory foi um dos que não o fizeram. Deixou seus restos no Everest em 1924. Outros retornam sem seus dedos, congelados pelos rigores das baixas temperaturas, ou loucos depois de respirarem os ionizados ventos foehn. Aqui no  Acambeúna, nada disso é problema. O que não significa que não enfrentaremos a possibilidade de adversidades em viagens pelo mundo, assim como o viciado em cigarros enfrenta os edemas pulmonares e cancros na sua ânsia por um prazer que é igualmente imensurável.

Antes parar de fumar do que parar de escalar.

Agradeci a sorte de ter uma montanha como essa tão perto de mim e desci feliz, sabendo, contudo, que no dia seguinte teria uma grande ressaca, porque subir montanhas aumenta muito a tolerância ao álcool, e a turma lá embaixo não estava para brincadeira. Além do mais, só o cume importa.